top of page

DREX em revisão: o que a mudança de rota do Banco Central revela sobre o futuro do dinheiro programável no Brasil

ree

A decisão do Banco Central de suspender a plataforma de testes do DREX e adiar o cronograma do Real Digital reacendeu um debate. Afinal, o Brasil estava a caminho de se tornar referência global no tema das moedas digitais de banco central (CBDCs). O movimento repentino gerou dúvidas, mas abriu espaço para um olhar mais profundo sobre o estágio real da tecnologia, os desafios jurídicos e a estratégia do regulador.


Como profissional que atua na análise de riscos e na regulação de criptoativos, acompanho de perto esse processo. E o que vejo não é exatamente um retrocesso, tampouco improviso: trata-se de um ajuste estratégico necessário diante de limitações tecnológicas e da evolução acelerada do próprio mercado.


A vanguarda do Banco Central e o valor da sinalização regulatória

O primeiro ponto que precisa ser reconhecido é o papel pioneiro do Banco Central. Sua disposição em liderar o debate sobre o Real em formato digital enviou um sinal inequívoco ao mercado: o Brasil estava disposto a integrar tecnologia e sistema financeiro em alto nível.


Esse movimento teve efeitos imediatos. A CVM continuou avançando na regulação que viabilizou a ampliação da tokenização. Os agentes privados, por seu turno, passaram a desenvolver soluções sofisticadas, baseadas em smart contracts e representação digital de ativos. Hoje, o país está muito mais maduro nesse campo - e isso se deve, em grande medida, à sinalização inicial do Banco Central.


Essa liderança não foi desperdiçada; ao contrário, moldou boa parte do ambiente de inovação que vivemos agora.


O obstáculo que não pode ser ignorado: privacidade em blockchain

Entendo que o principal motivo para a reconstrução da rota do DREX não decorre de incerteza política ou falta de prioridade. O mais relevante ponto de ruptura parece ter sido realmente tecnológico - a questão sobre o sigilo dos dados.


Blockchains, por definição, tendem à transparência. São excelentes em rastreabilidade e auditabilidade, mas péssimas em privacidade estruturada. A tentativa de conciliar esses atributos com o sigilo bancário, a proteção de dados e a segurança das informações dos cidadãos se mostrou limitada nos pilotos realizados.


Essa fragilidade não é exclusiva do Brasil; é um desafio global. Ainda assim, o Banco Central tomou a decisão que, nesse momento, compreendo como tecnicamente correta: interromper um projeto que não atendia satisfatoriamente aos requisitos de confidencialidade, ao invés de empurrá-lo adiante por pressão de calendário.


Recentemente, ministrei palestra sobre regulação e conformidade de negócios que usam criptoativos, no ETH Latam (São Paulo), maior evento da Ethereum na América Latina. O tema do sigilo de dados foi central em várias discussões, inclusive na palestra do Vitalik Buterin (fundador da Ethereum) que, em sua primeira vinda ao Brasil, destacou exatamente a importância de desenvolver soluções de privacidade compatíveis com o uso público da blockchain.


Do ponto de vista jurídico, o desafio é igualmente relevante: equilibrar inovação e proteção de direitos fundamentais. Não se pode deixar de reconhecer, contudo, que o trabalho conduzido pela equipe do Banco Central, liderada por Fábio Araújo e, no campo tecnológico, pela Clarissa, colocou o Brasil em um patamar de destaque internacional. Graças a essa experiência, estamos agora debatendo o futuro do dinheiro digital com muito mais maturidade e clareza.


O adiamento não é recuo: é recalibração estratégica

A interrupção do piloto e o adiamento para 2026 ou além precisam ser lidos sob duas lentes.


  • De um lado, há sim um reconhecimento de problemas reais. O modelo testado, baseado em tecnologias DLT, não entregou privacidade suficiente, e a interoperabilidade entre sistemas críticos também parecia não estar madura, por tudo que foi divulgado.


  • De outro lado, há uma decisão estratégica. O BC optou por priorizar uma infraestrutura mais imediata e funcional: uma plataforma de reconciliação de gravames e garantias. Em outras palavras, o DREX parece estar mudando de forma, não de propósito.


Lançar um Real Digital incompleto, apenas para cumprir cronograma, seria um erro grave. Mas entregar uma infraestrutura robusta que fortaleça o crédito - especialmente para os mercados de veículos e imóveis - é uma resposta direta às necessidades reais da economia. Importante é que essa infraestrutura realmente seja construída e entregue.


O fator stablecoins: o elefante na sala

É necessário ponderar, também, que esse adiamento ocorre num momento em que o mercado observa uma forte ampliação do uso de stablecoins, principalmente as atreladas ao dólar. Por outro lado, as estratégias com ativos tokenizados tem crescido e o objetivo declarado do Banco Central, com o projeto do DREX, sempre foi ampliar as opções de crédito para a população. Assim, a dificuldade de resolver o problema do sigilo dos dados, somada à necessidade de oferecer uma infraestrutura segura para operações de crédito, parece ter levado o Banco Central a priorizar a criação de uma plataforma de verificação de garantias - em vez de lançar o Real Digital de forma imediata.


Isso me parece acertado: o objetivo era ampliar a oferta de crédito, reduzir custos operacionais e estimular tokenização - e essas demandas podem ter prioridade sobre o lançamento massivo da moeda digital no varejo.


O próximo passo, contudo, depende de uma regulamentação mais amigável acerca das stablecoins, a despeito do quanto sinalizado nas resoluções recentes do Banco Central (519, 520 e 521). Isso para permitir que seja viabilizada maior escala na emissão de stablecoins lastreadas em real, com segurança e liquidez suficientes, a fim de sustentar de modo mais adequado o crescimento desse mercado de crédito baseado em contratos inteligentes.


Se todas as operações com stablecoins forem tratadas como transações cambiais - conforme vêm sinalizando as resoluções recentes do Banco Central -, o cenário pode se tornar ainda mais complexo. Paradoxalmente, essa restrição pode também incentivar o surgimento de stablecoins de real mais robustas, lastreadas em títulos públicos, ampliando a liquidez e até a demanda internacional por ativos brasileiros, desde que haja o estímulo correto. É um campo que ainda exige muita atenção e equilíbrio regulatório.


Abandonar a CBDC seria um erro estratégico

Um ponto importante precisa ser ressaltado: não há sinais de que o Banco Central tenha desistido da CBDC. O que houve foi uma reordenação de prioridades. É preciso perceber que a compatibilização do Real com a tecnologia blockchain atende a uma demanda que vai além do varejo. O Real programável, me parece, talvez se torne peça fundamental para ampliar a relevância da moeda brasileira em transações internacionais.


Confiar em stablecoins privadas - bem regulamentadas e em conformidade - poderia funcionar para o varejo. Mas talvez isso não atenda ao interesse estratégico nacional no médio e longo prazo. É importante notar que o Real não tem a mesma demanda internacional que o dólar, cuja posição é sustentada por estruturas como o sistema Euro-Dólar, o FMI e o SWIFT. O Real em formato digital, portanto, tende a cumprir um papel voltado à ampliação da participação do país no comércio internacional e numa maior integração financeira com parceiros estratégicos, como China e Rússia, por exemplo.


Com isso, embora se deva reconhecer que esse ainda é um cenário incerto, por ora, não consigo ver um cenário em que o abandono da CBDC, estrategicamente, seja acertado.


A virada pragmática do DREX

O que se vê agora é um DREX mais pragmático: em vez de tentar entregar tudo de uma vez, foca primeiro no que tem impacto concreto, rápido e seguro. A plataforma de reconciliação de gravames pode transformar o crédito no país, reduzindo assimetria informacional e aumentando a eficiência dos mercados. Isso, por si só, já é um avanço relevante.


Mas o movimento traz desafios: como integrar essa infraestrutura aos novos padrões tecnológicos, sem criar riscos sistêmicos? Como conciliar inovação com prudência regulatória? São perguntas que ainda precisam de respostas.


Aprendizados e desafios persistentes

O principal aprendizado que o atual reposicionamento em relação ao DREX deve trazer é que o problema da privacidade e do sigilo de dados precisa ser encarado como um direito fundamental. Em tecnologias como blockchain, garantir a segmentação segura dos dados é um desafio técnico global, que exige pesquisa, colaboração e inovação constantes.


Além do problema do sigilo, entendo que outro desafio técnico está no campo da interoperabilidade entre os diversos sistemas - instituições financeiras, cartórios, registros de imóveis e veículos, plataformas de tokenização, etc. Fazer com que todos esses sistemas “conversem” entre si, de maneira segura e eficiente, é algo complexo, mas necessário.


Outro ponto é o desafio regulatório. A regulação precisa ser pensada de forma sistêmica, e não compartimentada. É essencial que os órgãos reguladores atuem de maneira coordenada, interinstitucional, com pensamento em cadeia, para evitar sobreposições e lacunas que possam travar o desenvolvimento do ecossistema. Se cada regulador (BC, CVM, CNJ, etc.) tiver uma pequena regra diferente, surge risco regulatório, de arbitragem e de descontinuidade. O desenho regulatório, que ainda está em formação, deve ser amplo e coeso.


Expectativas

A principal expectativa é ver uma regulação construída de forma interinstitucional, que garanta interoperabilidade entre os sistemas, experiência de usuário facilitada e um ambiente que estimule a inovação. O equilíbrio entre regulação e estímulo à inovação é uma importante chave evolutiva.


O ideal é que se crie um ecossistema que premie as instituições e empresas que decidirem se adequar à regulação, reforçando a segurança jurídica e a credibilidade do sistema. Em suma: que o próximo ciclo não seja apenas tecnológico, mas também de governança, mercado e regulação equilibrada - para que o Real Digital cumpra o papel de ampliar o crédito, reduzir custos e manter o Brasil na vanguarda do sistema financeiro global.


Comentários


Logo - Lucas Carapiá

+55 (71) 3055-2055

+55 (71) 9 8258-0636

Rua do Sol Nascente, Edf. Centro Médico Emp. Vitraux, n.° 43, 24ª Andar - Av. Anita Garibaldi, Salvador - BA, CEP: 41.940-457 (Nestor Távora Advogados Associados)

ENTRE EM CONTATO

Copyright - 2025

bottom of page